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Pluralismo religioso nas famílias: um relato de experiência

Por Daiana Santos*

A liberdade religiosa é um tema que sempre nos custou caro, pois, desde o achamento da terra além mar, que nossas crenças, em especial, as crenças indígenas e africanas, tiveram o seu sagrado pormenorizado para que os anseios mercantilistas e o projeto de evangelização da coroa se sagrassem vencedores. 

A religião sempre fez parte da minha vida. Minha genitora, que nasceu em um lar cristão, ensinou a mim e aos meus dois irmãos valores de uma religião cristã. Meu genitor, que é de religião de matriz africana, também nos ensinou valores do candomblé. 

Graças a Deus e a todos os sagrados, que minha família nuclear sempre cultivou o respeito ao pluralismo religioso e, deste modo, aprendemos a conviver com a diversidade. Mas, sei que esta circunstância não é a condição frequente. O ambiente familiar pode e, geralmente é, a primeira experiência com a intolerância e a/o intolerante. A mesma intolerância que pode vir a fomentar preconceito beligerante e propagador do racismo religioso. 

Fui vizinha de porta Dona Ana. Dona Ana era conhecida como Ana Boiadeiro, pois, de acordo com os relatos dela e de familiares, incorporava “boiadeiro”, que era sua entidade protetora. Nossa convivência harmoniosa me traz boas lembranças e, mesmo não tendo contato com Dona Ana há décadas, lembro-me, especialmente, da pessoa amorosa que ela era e de que nunca trocamos palavras ríspidas ou fomos, reciprocamente, alvo de comentários desrespeitosos. 

Numa oportunidade em que fiz contato com jovens rapazes, trajados de branco, carregando um cesto de pipoca e uma imagem de São Lázaro, eles pediam uma oferta para o santo. Na verdade, não compreendi bem o que significava aquela situação, mas, considerei justo, contribui. 

Em que pese minhas memórias e experiências familiares terem sido muito ricas no campo da religiosidade, considerando os espaços sociais que partilhei ainda criança, vejo hoje, com algum distanciamento conquistado pela maturidade, que determinadas práticas da minha família implicavam, diretamente, no desrespeito ao sagrado e, tais práticas apesar de não silenciosas, eram inculcadas naturalmente. 

Tive uma tia que sempre se mostrou de fé católica, contudo, em dado momento de sua vida seguiu à iniciação no candomblé. Esse é um marcador importante para mim sobre uma dinâmica de relações parentais que, como as da minha família nuclear, parecia pacífica. 

Ocorre que, a partir da decisão de mudança de denominação religiosa a minha tia passou a ser duramente atacada. Cheguei a ouvir frases perversas de alguns parentes que diziam: “agora vai andar com as mães de chiqueiro”, “não coma nada na casa de sua tia, pois lá, tudo é consagrado ao demônio”. Não obstante ter escutado estas frases na minha casa, buscamos afastar essas discriminatórias e arbitrárias de modo que não fossem legitimadas, em nossa casa ou na nossa presença.

Somos formatados em inúmeros ambientes de opressões (estruturais) nos quais somos estimulados a sermos preponderantes, no tocante as nossas convicções de fé, ou a destruir o que as/os outras/os têm para si como sagrado, a fim de que nossa deidade reine, ainda que em tirana soberania. 

O desrespeito religioso deve ser rechaçado nos ambientes nos quais convivemos e diante de tantas mazelas em nome de “deus” não poderá o estado se quedar inerte ou silente. Mas, antes mesmo do estado, é preciso que haja um compromisso individual. O que você está disposta/o a tolerar ou condescender? Não é suficiente tolerar, é preciso respeitar e se interessar pelas realidades distintas das nossas, inclusive, considerando o sagrado que não for do nosso pertencimento. As realidades fáticas e fenomênicas denotam urgência para que (re)pensemos liberdade, direito, povo, religião, sagrado. 

Sonho que, no futuro, a pluralidade, o respeito e a convivência respeitosa com as diferenças seja a base da educação, sobretudo, nas famílias. Sonho, ainda, que o amor que toda religião prega suplante a mera retórica e se expanda para a prática.  Amor prático.

Membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa