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Notas sobre a Lei nº 13.796/19 e a regulamentação da prestação alternativa nas instituições de ensino

Por Raíssa Carmen Castro da Silva*

Antes de tratar detidamente da regulamentação da prestação alternativa nas instituições de ensino para estudantes que reivindicarem a escusa de consciência, no tocante a realização de obrigações educacionais, por motivo de crença religiosa, é essencial discorrer, ainda que rapidamente, sobre alguns fatos históricos e diplomas legais que estimularam a promulgação da lei nº 13.796 de 03 de janeiro de 2019.

Como se sabe, a segunda guerra mundial deixou mais uma lembrança terrível da capacidade humana de mostrar-se odiosa e intolerante. Assim, pelo receio da repetição daqueles moldes de letalidade e de seu alcance global, a Organização das Nações Unidas (ONU) promulgou diversas normas internacionais a fim de garantir proteção (mínima) universal aos direitos humanos de todas as pessoas, para a assimilação nos ordenamentos jurídicos dos estados soberanos signatários. 

O primeiro conjunto de normas estabelecido foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)1, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948. Além desta declaração, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, foi formalizado em 16 de dezembro de 1966, na XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Outro documento de fundamental importância para o tema em exame, também, é a Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença, que foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 25 de novembro de 1981, sete anos antes da Constituição da República Federativa Brasileira, conhecida como Constituição Cidadã (1988).

Com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela primeira vez na história dos direitos humanos, um documento foi capaz de estabelecer a liberdade de consciência e de crença como direito a ser usufruído por todas(os), universalmente, como pretensão de esforço comum das nações. É o que se lê do seu artigo 18:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

A partir dessas fontes e em virtude da força vinculante de tais disposições, nossa lei suprema - a Constituição Federal de 1988 - estabeleceu como garantia fundamental a norma inserta no art. 5º, VIII, segundo a qual 

(...) ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Da leitura da norma constitucional acima é possível enxergar com clareza o direito de a(o) aluna(o) matriculada(o) em instituição de ensino, pública ou privada, recusar-se a realizar atividades de natureza educacional que recaiam no dia que considere sagrado ou em dias designados para a prática de ritos e liturgias específicas, conforme os preceitos de sua religião.

Assim, pela dicção do texto constitucional, depreende-se que é plena a garantia da(o) estudante de não ser privada(o) do direito à educação básica ou superior, quando uma aula, prova ou qualquer outra atividade tenha sido agendada para dia em que, de acordo com sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades ou mesmo, pontualmente, obstaculizado. Na hipótese legal a aplicabilidade da norma resta condicionada a que a(o) aluna(o) não se oponha a cumprir prestação alternativa que a instituição lhe tenha ofertado.

Entretanto, o que emerge dos noticiários são as reiteradas objeções ao implemento do direito constitucional estampado no inciso VIII do artigo 5º, supradescrito. Instituições de ensino, por diversas vezes, subtraem o direito à prestação alternativa da(o) estudante que se ausentasse das aulas e/ou provas afixadas em dias de observância religiosa, negando, ainda, a justificação das ausências e a recomposição da nota.

Isso não apenas denota o quanto as instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, desconsideravam a singularidade do corpo discente, mas, como, desrespeitavam a diversidade do colegiado. Comprova, ademais, uma recorrente violação de um direito humano fundamental que, além de estar protegido pela constituição pátria, é salvaguardado por normas internacionais ratificadas pelo Brasil.

Mesmo sendo inequívoco o direito à prestação alternativa de ser assegurado pelas instituições de ensino, porquanto dever legal – o de garantir o direito à educação sem embargos ao exercício da liberdade religiosa –, foi necessária a criação de uma lei ordinária para tutelar o direito de forma mais específica, regulamentando-o.

A lei nº 13.796, de 3 de janeiro de 2019, nasceu de uma junção de esforços entre sociedade civil e poder legislativo. Ela alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, criando o art. 7º-A, para fixar, em virtude de escusa de consciência, o procedimento para prestações alternativas no tocante à aplicação de provas e à frequência a aulas, quando, porventura, colidentes com o dia de guarda religiosa.

A esse respeito, é relevante notar que a tramitação do projeto de lei que induziu à promulgação da lei 13.796/19 foi sobremaneira demorada e demanda um olhar ao seu histórico.

O projeto (nº 2171/2003), a que se refere a lei em questão, foi proposto pelo deputado Rubens Otoni, do Partido dos Trabalhadores (PT), pelo estado de Goiás, passando por três emendas e, enfim, chegando à Comissão de Educação para relatoria da deputada Maria do Rosário, PT – RS, em abril de 2018, sendo finalmente sancionada e transformada em lei ordinária sob o nº 13.796/2019, em 03 de janeiro de 20191.

Como se vê, muito embora seja um tema de extrema relevância para expressiva parte da população brasileira, o projeto de lei 2171/2003 passou dezesseis anos para ser transformado em lei ordinária e entrar em vigor, isso sem olvidar da antiguidade da norma constitucional, cuja eficácia deveria ser plena, haja vista tratar-se de direito fundamental.

Dezesseis anos depois da proposta de lei, as instituições de ensino agora têm o art. 7º-A da LDB para obrigatoriamente instituírem medidas alternativas para ofertarem às(aos) suas(seus) alunas(os), da seguinte forma:

Art. 7º-A: Ao aluno regularmente matriculado em instituição de ensino pública ou privada, de qualquer nível, é assegurado, no exercício da liberdade de consciência e de crença, o direito de, mediante prévio e motivado requerimento, ausentar-se de prova ou de aula marcada para dia em que, segundo os preceitos de sua religião, seja vedado o exercício de tais atividades, devendo-se-lhe atribuir, a critério da instituição e sem custos para o aluno, uma das seguintes prestações alternativas, nos termos do inciso VIII do caput do art. 5º da Constituição Federal:
I - prova ou aula de reposição, conforme o caso, a ser realizada em data alternativa, no turno de estudo do aluno ou em outro horário agendado com sua anuência expressa;
II - trabalho escrito ou outra modalidade de atividade de pesquisa, com tema, objetivo e data de entrega definidos pela instituição de ensino.
§ 1º A prestação alternativa deverá observar os parâmetros curriculares e o plano de aula do dia da ausência do aluno.
§ 2º O cumprimento das formas de prestação alternativa de que trata este artigo substituirá a obrigação original para todos os efeitos, inclusive regularização do registro de frequência.
§ 3º As instituições de ensino implementarão progressivamente, no prazo de 2 (dois) anos, as providências e adaptações necessárias à adequação de seu funcionamento às medidas previstas neste artigo. (Vide parágrafo único do art. 2)
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica ao ensino militar a que se refere o art. 83 desta Lei.”

O artigo esmiúça o modo de proceder para o gozo da prestação alternativa. Primeiro, é necessário que a(o) aluna(o) exponha o motivo religioso como fundamento mediante requerimento destinado à instituição em momento prévio à ausência. Não raro, as instituições possuem setor próprio para encaminhamento de requerimentos; noutras, porém, o requerimento deve ser feito diretamente ao gestor/coordenador da instituição. O interessado deve se informar quanto a isso.

Em resposta ao requerimento do interessado a instituição apresentará, sem custos/prejuízos (de natureza financeira, inclusive) para a(o) estudante, uma ou mais alternativas para suprir sua ausência, que variam desde prova ou aula de reposição, conforme o caso, a ser realizada em data alternativa, no turno de estudo ou em outro horário agendado com sua anuência expressa; até um trabalho escrito ou outra modalidade de atividade de pesquisa, com tema, objetivo e data de entrega definidos pela instituição de ensino.

Saliente-se que a prestação alternativa deve corresponder ao componente curricular e plano de aula do dia em que a(o) estudante esteve ausente.  Isto é, a prestação alternativa segue os mesmos parâmetros da obrigação original substituída. Importa dizer que a ausência da(o) aluna(o) não deve ser motivo de imposição de uma prestação alternativa severa, por parte da instituição de ensino. É imprescindível que a instituição utilize os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e igualdade como base para as atividades substitutivas a serem aplicadas. E, deve a referida instituição publicizar o rol de prestações alternativas, para ciência das(os) docentes e segurança do colegiado.

Vale ressaltar que, após cumprir a alternativa aplicada pela instituição em que estuda, a(o) aluna(o) terá sua falta justificada com regularização do registro de frequência.

Note-se também, que a lei apresenta no parágrafo 3º um prazo de 2 (dois) anos para a adequação às disposições legais, mas, é importante deixar claro que o prazo mencionado não suspende, tampouco interrompe o exercício do direito salvaguardado pela lei nº 13. 796/2019.
 
Este prazo de dois anos contido no texto legal é meramente uma liberalidade para arranjos administrativos, não se confundindo com prazo de vigência, de eficácia, aplicabilidade ou exigibilidade do direito. Trata-se de, respeitada a autonomia da instituição de ensino, em dilação de tempo razoável, sejam elaborados, por exemplo, formulários de requerimento, planejamento de atividades, dotação orçamentária específica, reajuste de calendário de aulas, tudo conforme a necessidade de cada instituição.

Assim, a partir do requerimento da(o) estudante, a instituição deverá fornecer uma das alternativas disciplinadas pela lei, ainda que não tenha preparado uma medida anteriormente. Após o requerimento, uma das alternativas taxadas em lei deverá ser aplicada, sem prejuízos para a(o) requerente.

A jurisprudência nacional1, apesar de muito divergir, já caminhava no sentido de considerar lídimo o direito à realização de atividades educacionais em dias e horários compatíveis com o dia de guarda religiosa da(o) aluna(o). Assim entendia a jurisprudência como uma interface do estado democrático de direito que assegura as liberdades.

Há, de igual modo, uma tendência relevante na jurisprudência autóctone para que candidatas(os) ao serviço público, tenham reconhecida como legítima a recusa em participar de fases do certame que recaiam no dia de guarda religiosa, cabendo à administração pública providenciar alternativas para fins de presença ou realização de provas, à semelhança do que já ocorre em relação à prestação alternativa fornecida pelas instituições de ensino.

Nessa toada, não é demais pensar que para servidoras(es) em estágio probatório, bem como para servidoras(es) efetivas(os), o raciocínio seguirá o entendimento dos tribunais, segundo os quais o agente estatal pode invocar razões de convicção religiosa para eximir-se de obrigação funcional quando esta coincidir com o dia de resguardo ou de guarda religiosa. De tão relevante essa questão, foi reconhecida a repercussão geral sobre o tema, que é objeto do Agravo em Recurso Extraordinário nº 1099099, de relatoria do ministro Edson Fachin.

Em arremate, pode-se resumir a questão a uma logicidade antes não atentada por muitas(os): só se justifica a privação do direito à ausência da(o) estudante que se escusar de comparecer por motivo de crença religiosa, quando esta(e) também se recusa ao cumprimento da prestação alternativa. Logo, se não há prestação alternativa apresentada pelo Estado ou iniciativa privada, conforme o caso, não há que se falar em imposição de qualquer forma de prejuízo à(ao) interessada(o).

A lei nº 13.796/2019 trouxe a esperança de que o direito declarado pode funcionar, de que há caminhos para a sua concretização pela garantia da dignidade e cidadania plena para “cada” e para “toda” pessoa. 

*Membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-BA