Editorial: Por uma nação reconciliada
Curitiba (PR), 31/08/2009 - O editorial "Por uma nação reconciliada" foi publicado na edição de hoje (31) do jornal Gazeta do Povo (PR):
"No último dia 28 de agosto, a Lei n.º 6.683/1979, mais conhecida como a Lei da Anistia, completou seus 30 anos de existência em meio a intensos debates acerca de seu alcance. Mais especificamente, se essa lei teria ou não abrangido crimes cometidos por militares, notadamente os crimes de tortura, sequestro e homicídio.
Do lado daqueles que entendem que a Lei da Anistia teria sido mesmo ampla, geral e irrestrita, os argumentos mais frequentes são: a) a amplitude da redação do artigo 1.º da referida lei: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). § 1.º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política....; b) as garantias constitucionais previstas no artigo 5.º, da Constituição Federal de 1988: XXXIX não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; e XL a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; c) que a previsão de que o crime de tortura seria insuscetível a anistia teria entrado em vigor apenas com a Lei n.º 9.455/1997; e d) que, em termos práticos, todos os crimes já estariam prescritos.
Já em relação aos que sustentam a inaplicabilidade da Lei da Anistia, os principais argumentos são os seguintes: a) o de que o espírito da Lei da Anistia seria o de beneficiar apenas os opositores ao regime; b) o de que não se poderia admitir uma autoanistia, ou seja, os ofensores não poderiam promover um perdão a si mesmos; c) o de que os crimes praticados pelos militares, com destaque especial para a tortura, não poderiam ser caracterizados como crimes políticos; d) o de que os crimes praticados nos anos de chumbo seriam crimes contra a humanidade e que, por isso, seriam imprescritíveis e não sujeitos a anistias, com base em diplomas internacionais dos quais o Brasil seria signatário; e e) o de que os prazos prescricionais estariam suspensos em decorrência da não abertura de muitos dos arquivos da época da ditadura.
Como se vê, portanto, um debate com endereço certo: o Supremo Tribunal Federal. E a mais alta corte do país enfrentará o tema em decorrência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de n.º 153, movida pela Ordem dos Advogados do Brasil.
O tema é evidentemente polêmico e no próprio governo não há consenso. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, defende a anistia ampla. Já o ministro da Justiça, Tarso Genro, tem-se revelado um dos principais defensores da tese de que os militares não teriam sido beneficiados pela Lei da Anistia.
Mas, colocado o problema, será correto centrarmos e quase que limitarmos o debate na questão do alcance da Lei da Anistia e, em última análise, na punição ou não dos militares? Parece-nos que não.
O olhar deve ser mais amplo. Preocupa-nos que o desejo de punição seja ou ao menos pareça ser muito mais intenso do que a busca da verdade e o esforço por uma verdadeira reconciliação social.
Não podemos, jamais, esquecer nossa história. E, ao resgatá-la, nosso objetivo principal deve ser o de reconciliação e pacificação social.
Como já se defendeu neste mesmo espaço, o zelo pela memória de sua própria história é sinal da vitalidade de um povo que, guardando as lições do passado, compreende melhor o presente e prepara com mais segurança o futuro. Mas outro sinal de saúde coletiva é a capacidade de perdoar, de impedir que o rancor imobilize e impeça a construção de uma nação mais humana. Fala-se aqui do perdão em lato sensu, do valor a ser perseguido por cada indivíduo em particular e por todos como povo, independentemente do credo de cada um.
E, nessa linha de pensamento, o melhor exemplo para o Brasil talvez não seja o de países mais próximos, como Argentina e Chile, mas sim um modelo mais distante, que vem do outro lado do Atlântico: o da África do Sul, com especial destaque para a figura de Nelson Mandela (Prêmio Nobel da Paz em 1993). O exemplo de um homem que passou quase três décadas na prisão e que, ao se tornar o primeiro presidente negro da África do Sul, buscou, acima de tudo, a reconciliação da sociedade sul-africana.
Assim, mais do que a punição dos militares, o que devemos defender, com vigor, é a abertura definitiva dos arquivos da ditadura e a adoção de mecanismos eficientes de reconciliação. E um bom começo pode ser a discussão acerca da Lei n. º 11.111/2005, que, curiosamente sancionada pelo presidente Lula, atribuiu à Casa Civil hoje ocupada por Dilma Rousseff e antes por José Dirceu o poder de classificação e de decisão sobre a divulgação ou não de documentos considerados sigilosos, dentre os quais se encontram, como sabemos, muitos arquivos do regime militar."