Duração de depoimentos e dignidade da pessoa humana
* Esse ensaio, trabalhado a partir de palestra proferida no dia 16/9/2005, denominada CPI: mídia e direito penal do espetáculo, no Seminário Internacional de Direito Penal e Processo Penal, organizado pelo ITEC e PUC/RS, foi publicado, originariamente, na RIBCCRIM n. 75/2008 – ed. 75. Devo registrar os agradecimentos ao colega de escritório Rodrigo de Oliveira Ribeiro e a (então nossa) estagiária Larissa Pontes, que nos auxiliaram na pesquisa. De igual modo, e com especial carinho, devo agradecer a professora doutora Patricia Serra Vieira, não só por aturar as minhas inquietudes, que não são poucas, mas, em particular, por ter me ajudado na seleção de obras de Direito Civil que foram de suma importância para a construção desse texto.
De plano, é bom avisar que já sustentamos, em ensaio anterior, e continuamos aqui a sustentar com o mais vivo empenho, que as CPIs, merecidamente prestigiadas e fortalecidas pela CRFB, representam, para a manutenção do Estado democrático de direito, um dos braços mais fortes de que dispõe o Legislativo no aperfeiçoamento das leis e das instituições republicanas. Por conseguinte, por ser esse Poder detentor de instrumento tão enérgico, continuamos a defender, doutro lado, que as células parlamentares, muito em voga, no Brasil, a partir da década de 1990, precisam logo pensar e repensar nas suas atuações, para que não sejam, em futuro breve — isto é: se é que o futuro já não se transformou no presente —, desmerecidas e desacreditadas pelo povo brasileiro, que não pode prescindir de um Legislativo elevado e autônomo. Aliás, não por outro motivo que os senadores, os deputados federais e estaduais, e também os vereadores, foram escolhidos, por meio do voto popular, para cumprir das mais relevantes missões públicas.
Os politiqueiros devem se abster de utilizar processo de tamanha envergadura no cenário político brasileiro como palco para atingir suas vãs e mesquinhas expectativas eleitoreiras.[3] Faz tempo, muito tempo, que os cidadãos passaram a observar os atos e as atitudes de seus representantes. Eles se encontram atentos. Atentos até demais. E as respostas a esses (poucos) irresponsáveis sempre virão nas urnas. Se não nas de hoje, por certo, nas de amanhã ou nas de depois de amanhã. Mas virão. É só uma questão de tempo.
O Parlamento precisa ter em mente, cada vez mais, que os poderes a ele cometidos pelo legislador originário não são ilimitados. São limitados. E os limites encontram-se delineados, com clareza solar, na Lei das Leis, nas leis ordinárias[4] e nos regimentos internos das Casas que as complementam. Os limites das CPIs e de atuação de seus membros hão de ser hígidos.[5] Aliás, já falamos que poder, sem hígidos limites (não se está a falar em engessamento, mas em garantismo, o que é bem diferente), só serve de berço à germinação de prática de atos abusivos, como bem demonstram os nefastos Anos de Chumbo, que queremos ver longe de nossos olhos, mentes e almas. Para que nunca mais!
O Legislativo necessita, pois, compreender, ainda a fórceps, que a sociedade civil amadureceu e está alerta, muito alerta, diríamos, aos desmandos e aos abusos perpetrados por (alguns) parlamentares-show,[6] os quais, despindo-se de suas nobilíssimas missões, pensam ter encontrado, nas sessões onde acontecem os trabalhos inquisitoriais, no mais das vezes transmitidas, em tempo real, por televisões e rádios — os quais obtêm índices de audiência nunca dantes vistos —, o seu momento Andy Warhol.[7]
Paulo Sérgio Leite Fernandes, em um de seus Ponto Final,[8] como que antevendo o que Mário Rosa, mais tarde, denominaria de Lei Andy Warhol às avessas,[9] depois de assistir numa CPMI ao depoimento de uma senhora, esposa de um investigado, mas, incontestavelmente, investigada também, embora convocada a depor como testemunha fosse (como se o eufemismo pudesse fazer tábula rasa sobre a sua efetiva condição no procedimento), cientificava-nos que
o depoimento (...) durou oito horas, sendo encerrado porque a moça teve uma quinta crise de choro, não podendo continuar. (...) alguns membros da Comissão persistiram na inquirição extravagante, valendo-se, um ou outro, de argumento no sentido de que a declarante, sendo verdadeira, estaria preservando a honra da família e a dignidade dos filhos. (...) As características dos ouvintes e da posição de inquiridores variados é múltipla. Uns, atrelados ao povo sofrido e desempregado, sentem certa dose de prazer enquanto vêem uma representante da denominada classe média alta sendo publicamente escarmentada, enquanto se desfaz em lágrimas; outros — ou outras — têm uma irritação disfarçada enquanto percebem, no entremeio do depoimento, que a interrogada resiste, não se abatendo, alegrando-se os ouvintes, entretanto, naqueles momentos de acabrunhamento ante a agressividade de um inquisidor escabujante. Há um terceiro grupo que tem dó, contendo-se dentro das paralelas da urbanidade. Em linhas gerais, a população acha "muito bem feito" (...). Tive, em algumas oportunidades, a constatação de que hoje ainda se aplicam, embora há muito revogadas, as Ordenações que mandavam salgar o solo dos condenados e lhes tisnar a descendência.
(...) melhor teria sido que a inquirição se fizesse à moda da Inquisição, tudo em segredo, para que não se visse aquela cena que não honra quem extrapolou os parâmetros da educação e do pressionamento legítimo, embora, no meio disso, também me venha à memória rotineira atividade da polícia política durante a ditadura. Havia o mauzinho e o bonzinho. O primeiro torturava o investigado, deixando-o em situação nauseante. Em seguida, chegava o segundo. Trazia café, sanduíche, cobertor e mercurocromo, tecendo ríspidas considerações contra o antecessor. (...) No fim, a discrição seria boa opção do Parlamento, evitando-se, inclusive, episódios que chegam, às vezes, a provocar repugnância. As cenas visualizadas produzem conseqüências além das pessoas dos torturados (e não se diga que não é assim).
O processo de (re)democratização é longo. Sabemos. Mas ele já (re)começou e vem sendo solidificado no cotidiano sofrido de cada cidadão. O Legislativo não deve se permitir, sob pena de se deslegitimar, colocá-lo em risco, porque os abutres estão, como sempre estiveram, à espreita. Basta sentirem o odor da carne em decomposição para iniciarem o banquete, ainda que este seja servido em desfavor do Estado democrático de direito; conseqüentemente, em desfavor dos princípios e garantias pelos quais combatemos durante anos.
Por estas e outras razões, os repórteres Matheus Leitão e Ana Paulo Galli[10] alertaram tempos atrás, para o fato de que as CPIs, "ainda que sejam um importante instrumento do regime democrático, essenciais para o equilíbrio entre os poderes e o exercício de uma das funções mais nobres do Legislativo — fiscalizar o Executivo —, (...) vêm sendo banalizadas. Elas têm, progressivamente, virado arma de promoção pessoal de políticos, munição para alvejar adversários e, nos piores casos, balcão de negócios em que empresários são intimidados ou achacados, segundo afirmam os próprios parlamentares."
E o triste é que este fato reflete o pensar de significativa parcela do povo brasileiro. O ceticismo, em dias atuais, vem imperando, indistintamente, no seio da sociedade, que já não mais enxerga nas inquisas parlamentares o tal braço forte posto a lhe proteger. Ou será que a Carta não é mais Cidadã?!
Apesar de tudo que vem ocorrendo ao longo destes últimos sofridos anos no Legislativo brasileiro, força dizer que as CPIs devem permanecer na Carta Política. Mais. Devem continuar a ter os poderes que lhe foram cometidos pela Carta Política. O que é indisputável é que elas estão precisando encontrar o seu ponto de equilíbrio. A sua verdadeira razão de ser. Enfim, elas precisam ser (re)colocadas nos (garantistas) trilhos que a conduzam a uma estação segura. Aliás, elas jamais deles deveriam ter saído e, como têm saído com freqüência indesejável, não poderiam estar sendo aplaudidas por segmentos retrógrados da sociedade civil, com especial destaque, por diminuto segmento da imprensa, que, no particular, não vem bem cumprindo sua importante missão social, porque, ao invés de bem informar, vem contribuindo com as atrocidades perpetradas por alguns (pseudo)representantes do povo, contribuindo, deste modo, com a cegueira de parte significativa da sociedade civil, que não bem conhece (ou não tem como conhecer, porque mal informada) os caminhos e os descaminhos de uma investigação parlamentar.
Com efeito, Leitão e Galli[11] têm razão: na legislatura "que tomou posse em 2003, foi pedida a abertura de 34 CPIs. Quase uma a cada mês. Dezoito foram instaladas. Apenas metade tinha sido concluída até semana passada [4 a 10/9/2006]. Pede-se CPI para tudo. Até para investigar os radares de trânsito que aplicam multa por excesso de velocidade ou para avaliar a venda da fábrica de chocolates Garoto para a Nestlé. As CPIs passaram a ocupar tanto tempo na agenda do Congresso que a principal função dos parlamentares — legislar — ficou relegada a segundo plano. Reformas urgentes ficam paradas e decisões importantes sobre o futuro do país são esquecidas".
Sobre o tema, o economista Albert Fishlow[12] preleciona que as CPIs "‘representam um passo atrás’ porque distorcem a função dos deputados e senadores’. No Brasil, há muitas leis ainda necessárias para que o país acelere a taxa de crescimento, melhore a distribuição de renda.’"
"‘É necessário que as CPIs tenham bem definido os limites do trabalho e aperfeiçoem o método jurídico na coleta de provas’, diz Fabiano Santos, cientista político do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Exemplos internacionais mostram que a definição dos limites dos poderes das CPIs pode ser resolvida de diferentes formas. Na França, as investigações parlamentares são sigilosas. Somente o relatório final pode ser divulgado. Nos Estados Unidos, os parlamentares não podem quebrar sigilos[13] nem decretar prisões [no particular, no Brasil também não podem decretar prisões, em razão da reserva de jurisdição, exceto naqueles casos em que qualquer do povo pode prender em flagrante delito]. Têm de pedir autorização à Justiça. O limite foi uma resposta aos abusos cometidos nos anos 50 durante o movimento de caça aos comunistas liderado pelo senador Joseph McCarthy. Cabe à sociedade brasileira encontrar a receita para preservar as CPIs, combatendo a banalização e os excessos."[14]
É o que se espera. É no que se crê. E é o que acontecerá, pela simples circunstância de que a sociedade patrícia, em honra ao estatuído na CRFB, cônscia de sua importância, não permitirá que este ou aquele (falso) parlamentar, jogue por terra ferramenta tão importante para a construção de um país mais justo e equânime. Confia-se.
CPI: sua razão de ser
Dispõe o § 3º, do art. 58, da CRFB, que "as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores".
Por não ser o escopo desta reflexão, não nos perderemos em maiores digressões doutrinárias sobre os poderes e limites das CPIs, tampouco em questões atinentes à sua ilegalidade.[15]
Porém, é incontestável que, com o advento da Carta Política de 1988, várias têm sido as discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito dos seus reais poderes e dos seus reais limites, mormente em razão da locução introduzida, pela vez primeira em nosso ordenamento jurídico, de que elas "terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais".
Muitos embates judiciais ainda estão por vir, até que encontremos um equilíbrio sobre a temática, a qual, por ser indispensável à República, vem merecendo, por parte dos operadores do direito, análises profundas, produzidas longe da fogueira dos acontecimentos (e das vaidades também, é picar) e das reflexões decorrentes e típicas dos confrontos políticos em situações semelhantes. Distanciamento fundamental, por envolverem essas análises grandes conflitos, originados pela contradição interna existente entre princípios teóricos que circundam os tais poderes e limites das CPIs, e os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos.
No pensar de Carlos Alberto Direito,[16] "em geral, podem as comissões, no exercício de suas funções, determinar o comparecimento de testemunha, colher depoimentos, promover diligências, requisitar documentos, pedir informações a qualquer repartição pública, expedir notificações. É evidente que os atos praticados com apoio em poderes tão amplos, se decorrentes de investigação vedada ao Poder Legislativo, seja porque ao largo de sua competência, seja porque atingem direitos constitucionalmente protegidos, violam direito líquido e certo. E, desse modo, é inquestionável a competência do Poder Judiciário para prestar jurisdição".
E, nos dizeres de Luís Roberto Barroso,[17]
As comissões parlamentares de inquérito são importantes instrumentos da atividade fiscalizadora do Poder Legislativo. Seus poderes são amplos, porém não ilimitados. Não poderão, assim, extrapolar o âmbito de competência do Congresso Nacional, investigar temas que digam respeito à vida privada e não ao interesse público, nem interferir com os direitos constitucionalmente assegurados aos indivíduos.
A cláusula referente "aos poderes de investigação próprios das autoridades judiciais", introduzida pela Constituição de 1988 (art. 58, § 3º), destinou-se a dar imperatividade às deliberações e determinações das CPIs, como intimações, requisições de documentos e outras providências. Na vigência das Cartas anteriores, bem como nos termos da Lei 1.579/52 tal não ocorreria. Pela nova redação da norma constitucional, a inobservância de tais determinações enseja cumprimento coativo. Tais medidas, todavia, não são auto-executáveis. Dependem da intervenção do Poder Judiciário.
Já para Nuno Piçarra, "o inquérito parlamentar seria assim um instrumento polivalente ou plurifuncional, susceptível de utilização na fase preparatória de um procedimento legislativo, de direcção política ou de fiscalização, podendo servir não só para a preparação de actos jurídicos com eficácia obrigatória mas também de quaisquer actos políticos do Parlamento. Por isso mesmo, o seu objecto poderia ser tão abrangente quanto o âmbito da competência do Parlamento. Esta definição do inquérito conheceu um particular enraizamento no mundo germânico, sob a denominação de ‘teoria do colorário’ — de acordo com o qual ‘o inquérito parlamentar exprime a competência da assembleia dos representantes do povo para investigar factos e acontecimentos cujo conhecimento seja necessário para o exercício das funções parlamentares. Da própria definição de inquérito parlamentar resulta a natureza dinâmica do instituto. Ele surge como corolário lógico e jurídico necessário da actividade que cabe à assembleia dos representantes de preparação e adopção de cada acto formal mediante o qual exerce a sua competência constitucional. Aqui reside a finalidade e o limite da função cognoscitiva exercida através do inquérito parlamentar."[18]
Na lição de Celso de Mello — expressada em decisão paradigmática[19] e que está a merecer todos os encômios, por ter garantido o direito do advogado[20] de prestar assistência ao seu constituinte e o deste de ser assistido por seu advogado durante as sessões das comissões, livremente, a critério de um ou de outro, porque sua presença "reveste-se de alta significação, pois, no desempenho de seu ministério privado, incumbe-lhe promover a intransigente defesa da ordem jurídica sobre a qual se estrutura o Estado democrático de direito":[21]
A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos e nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência e nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.
Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem e não devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam, processam e julgam, não estão exonerados do dever de respeitarem os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.
Mesmo o indiciado, portanto, quando submetido a procedimento inquisitivo, de caráter unilateral, em cujo âmbito não incide a regra do contraditório (é o caso do inquérito parlamentar e do inquérito policial),[22] não se despoja de sua condição de sujeito de determinados direitos e de senhor de garantias indisponíveis, cujo desrespeito põe em evidência a censurável face arbitrária do Estado cujos poderes devem necessariamente conformar-se ao que impõe o ordenamento positivo da República.
Como se nota, apesar de o texto constitucional ser límpido, como límpidas são as leis ordinárias e os regimentos internos das Casas, há muito se faz indisputável que o Legislativo edite nova lei, à luz da Carta Política, dispondo sobre o efetivo procedimento das CPIs, para que estas não sejam, como estão sendo, maculadas pela ilicitude que a ninguém aproveita. A edição dessa lei há de ser precedida de profundo debate com a academia e a sociedade civil, mantendo-se o Parlamento, para tal, distante dos pouco éticos holofotes normalmente acesos, por parcela da mídia, em razão do acontecimento do dia, os quais, não raro, cegam alguns e, também não raro, emprestam efêmera notoriedade a outros tantos.
Enquanto este momento não chegar, águas sujas ainda vão rolar em direção ao córrego, poluindo-o, de jeito irreversível.
Apresentação da temática pela nova tábua axiológica do ordenamento jurídico vigente
Os depoimentos de testemunhas ou os interrogatórios de indiciados perante algumas CPIs têm tido duração demasiado longa, por ininterrupta a sessão (são oito, dez, quatorze, dezesseis horas; enfim, mais parece uma maratona, só que a disputa não tem vencedores, só vencidos), levando as testemunhas e/ou os indiciados a situação indignamente opressiva e violenta, não só pelo esgotamento psicofísico a que são submetidos, mas, sobretudo, pela direta e inquestionável agressão e abalo emocional que essa exposição pública provoca à sua dignidade pessoal; situação esta, é óbvio, totalmente divorciada da finalidade da investigação.
O problema da ausência de previsão legal quanto à duração desses atos vem de longe. Certa feita, Pedro Lessa, em momento que antecedera a sua investidura como ministro do Supremo Tribunal Federal, houve por bem sacudir questão de ordem com o fim de indagar sobre a limitação temporal de sustentação oral para Rui Barbosa, que reclamava da tribuna a sua exigüidade:
Senhor Presidente — Estou aprendendo. Rui Barbosa, pelas luzes de sua sabedoria, há muito adquiriu o direito de falar nesta Casa pelo tempo que entenda.[23]
A problemática atual, entretanto, difere, substancialmente, daqueloutra vivenciada por Lessa e Rui. Bons tempos aqueles... Mal poderiam eles imaginar os tempos modernos... Por sinal, nem eles, nem nós.
Não é importante, aqui, recordar certas inquirições de testemunhas/indiciados realizadas por recentíssimas CPIs. Em realidade, se estivéssemos em locais outros que não na Casa do Povo as conseqüências poderiam ser resolvidas de jeito diferente, porque o homem, humilhado, pode, em defesa do eu, tomar, em relação ao outro, atitude jamais por ele dantes imaginada.
A humilhação implica, consoante Pierre Ansart, em uma "situação particular na qual se opõem, em uma relação desigual, um ator (individual e coletivo) que exerce uma influência, e, do outro lado, um agente que sofre esta influência. A situação humilhante é, por definição, racional: comporta uma agressão na qual um sujeito (individual ou coletivo) fere, ultraja uma vítima sem que seja possível uma reciprocidade. A ausência de reciprocidade é aqui essencial. Uma humilhação provisória, um comentário injurioso, uma ameaça podem ser reparados por uma resposta à altura da agressão recebida, no caso de existir uma resposta possível. Mas a humilhação não reparada é essencialmente desigual e, com freqüência, durável; o domínio é exercido em proveito do ator em detrimento da vítima. Nesta humilhação, a vítima é confrontada a uma situação ou a um acontecimento contrários às suas expectativas, contrários aos seus desejos, sem sentido para ela, representando a negação da imagem que faz de si próprio. (...) A humilhação é uma das experiências da impotência."[24]
Sabe-se, com Ansart, que o homem humilhado, ao ter aniquilado o seu eu, tem sua afirmação vital negada, rejeitada e destruída, sentindo-se, pois, relegado da "relação de reciprocidade, experimentando a vergonha de si mesmo".[25] Ele tem o seu sofrimento aumentado quando nota que "o sujeito ativo de sua humilhação não percebe sua dor [ou percebe, e quer mais, dizemos nós] ou tem satisfação com ela."[26] As decorrências dessas barbáries são incomensuráveis. Para o humilhador, elas são diametralmente opostas, porque atingido o seu vil intento: docificou o homem, ao negar-lhe suas reações naturais.
Claudine Haroche, com precisão cirúrgica, doutrina no sentido de que a "a humilhação reside no fato de se estar reduzindo ao eu e, conseqüentemente, ao corpo. Lévinas, falando do homem que ‘acorrentado a seu corpo recusa o poder de escapar de si mesmo’, anunciou a atmosfera contemporânea, seus valores, maneiras de ser e de sentir superficiais e desengajadas: ‘o pensamento torna-se jogo, o homem se compraz com sua liberdade e não se compromete de forma definitiva com nenhuma verdade’ (...). ‘O homem transforma seu poder de duvidar em falta de convicção. Não se prender a uma verdade torna-se para ele não engajar sua pessoa na criação de valores espirituais.
O espaço da intimidade, do corpo, é o lugar dos sentimentos mais profundos: lugar que abriga e protege o sentimento da existência, o sentimento de si mesmo; mas pode ser também um lugar ameaçador para o eu; espaço de clausura, do sentimento de vulnerabilidade e de impotência, território onde a humilhação pode se exercer de maneira constante e inelutável."[27]
A humilhação é, por conseguinte, uma das mais cruentas formas de tortura, crime de especial gravidade (recusamo-nos a utilizar o adjetivo hediondo), repelido pela Carta Política, em seu art. 5º, inc. III, que assegura, a todos, o tratamento digno, determinando que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".
De mais a mais, temos observado, e a imprensa noticia o fato com grande estrépito, que as CPIs vêm prolongando, demasiadamente, a" " duração dos depoimentos e/ou interrogatórios de cidadãos ali chamados a comparecer, com o fim de vencê-los pela fadiga e/ou pelo abalo psicofísico a que são compelidos, tudo, dizem, tão-somente para atender aos desprezíveis caprichos ditados pela sanha policialesca[28] de (alguns) parlamentares-show,[29] que em nada contribuem para os elevados objetivos almejados pela investigação legislativa.
Não é por causa diversa que olhos atentos têm rotulado as sessões das CPIs de "espetáculos", "guerra de egos", "aula de antropologia", "show de horrores" etc.[30] Mas isto não é bom. É ruim. Vai de encontro às mais comezinhas regras que estão, ou deveriam estar, a cimentar o Estado democrático de direito. Porém, apesar de o alerta vir de muito tempo atrás, o Parlamento faz questão de não ver e ouvir os reclamos garantistas. Ou pior: insiste em não querer ouvir e ver, é o que se depreende, sem qualquer custo.
Sobre o tema, Betch Cleinman bem o pontua:
Nesse momento, as Comissões Parlamentares de Inquérito estariam se transformando em Comissões Parlamentares Inquisitoriais. Nessa passagem, revela-se a figura da CPI-espetáculo, aquela que não mais se subordina à Constituição, mas aos índices de audiência e aos imperativos do mercado da política. Agradar ao público torna-se vital, pois dele fazem parte potenciais eleitores e financiadores de campanhas eleitorais. Na fogueira das vaidades, no fogo das paixões, são queimados critérios racionais e objetivos suscetíveis de permitir avaliar e julgar as ações dos indivíduos. Resultado: varre-se a Lei Maior, queimam-se os princípios civilizatórios.[31]
Não foi por motivo diferente que Celso de Mello, em decisão já referida,[32] advertiu, sem pejo, que:
Em seu interrogatório, o indiciado [e as testemunhas também, dizemos nós] terá que ser tratado sem agressividade, truculência ou deboche, por quem o interroga diante da imprensa e sob holofotes, já que a exorbitância diante da imprensa da função de interrogar está coibida pelo art. 5º, III, da Constituição Federal, que prevê que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".
Aquele que, numa CPI, ao ser interrogado, for injustamente atingido em sua honra ou imagem, poderá pleitear judicialmente indenização por danos morais ou materiais, neste último caso, se tiver sofrido prejuízo financeiro em decorrência de sua exposição pública, tudo com suporte no disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, X.
O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CRFB) é considerado o parâmetro de efetividade de todo e qualquer dispositivo legal, o que permite inferir que, na atualidade, a maior e mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade é a desobediência ou transgressão, sobretudo, a este princípio jurídico, por cabal insurgência a todo o sistema legal.
No direito contemporâneo, todas as categorias jurídicas foram submetidas a uma obrigatória releitura, tomando por base os princípios constitucionais, a nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º). Ou seja, a Carta Política não impôs apenas limites externos, mas promoveu uma alteração na estrutura e no conteúdo das categorias jurídicas, sobretudo as civis.[33]
A influência do tempo na integridade psicofísica: pela preservação da dignidade da pessoa humana
Do prisma histórico, temos que, desde os tempos dos tribunais da Santa Inquisição, o alongar indiscriminado das audiências e a privação do sono eram poderosos métodos utilizados pelo juiz-inquisidor para obter a confissão de mulheres vistas como bruxas e daqueles tidos como hereges.[34] Nesta corredeira, João Gualberto Garcez Ramos esclarece:
O tempo, na audiência processual penal inquisitória, é indeterminável. Em termos juridicamente mais inteligíveis, é possível afirmar que a conclusão da audiência processual penal inquisitória ¾ sobretudo a de instrução, representada pelo interrogatório ¾ está submetida a uma condição resolutiva, sabida pelo inquisidor e pelo ‘argüido’: que este confesse o crime. A partir deste momento, a audiência já pode se encerrar. Se ele não ocorrer, a audiência se estenderá até quando for preciso.[35]
Sabe-se que, no processo, o interrogatório é o momento de maior tensão psicológica para o cidadão, até para os mais argutos, porque, em poucas palavras e em pouco tempo, ele tem de produzir, sem tergiversações, sua autodefesa. Se for mal, pode estar abrindo ensanchas para o início de um fim tenebroso. A respeito do tema, Guilherme Nucci[36] nos lembra imorredoura lição de João Mendes Júnior.[37] Vejamos:
Em França, talvez mais do que em Portugal, os presos, nos termos da Ordonnance de 1670, eram interrogados incessantemente e os interrogatórios começados, o mais tardar, vinte e quatro horas depois da prisão; ali, os acusados prestavam juramento, os interrogatórios eram reiterados todas as vezes que aprouvesse ao juiz; não dava ao acusado prazo algum para responder, a fim de que ele não tivesse azo de formar astúcias e sutilezas para encobrir a verdade.
O interrogatório demasiado longo e sem interrupções é uma prática que visa, por intermédio da tortura, a enfraquecer e a desestabilizar o ser humano, sem o uso da violência física, mas apenas com a impulsão de mecanismos de pressão psicológica, simplesmente pelo desgaste excessivo. Leva a pessoa à confusão mental, diminuindo sua capacidade de concentração. Aliando a pressão prolongada pelos inquiridores com o cansaço e a extenuação física, chega-se ao estado de vulnerabilidade propício para se obter a tão almejada confissão,[38] ou qualquer deslize ou palavra incerta que possa ser entendida como comprometedora.
A doutrina argentina[39] se refere à prática como interrogatório contínuo:
Es el más difundido por la novelística y la cinematografía de temática policial, como también prohibido en casi todas las legislaciones. No obstante, sigue siendo usado en diversos países.
Emplean así un interrogatorio continuado que mantiene al sospechoso constantemente en la defensiva debilitando su habilidad para elaborar excusas lógicas, coartadas y evasivas a las preguntas y escucha las fallas que pueda cometer el sospechoso, mientras el otro está interrogando. Con este "interrogatorio continuo", los interrogadores confunden la mente del sospechoso, al no darle oportunidade de descanso. Con dicha desubicación y debilitamiento mental, las secciones conscientes y subconscientes del sujeto quedarán divididas de modo que cuando oiga una pregunta, ésta con frecuencia incidirá y hará reaccionar directamente al subconsciente antes que la conciencia y la voluntad puedan evitarlo; de esta manera, la verdadera contestación ajustada a los hechos ya habrá sido dicha.
Prosseguindo o interrogatório por longo período de tempo, o inquisidor busca torturar emocionalmente o interrogando, explorando eventual falha ou contradição cometida, muitas vezes escusável pelo cansaço, por mais desprezível que seja.[40]
A situação, encarada em seus derradeiros limites, deve ser encaixada na definição de tortura prevista na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, realizada na Colômbia em 1985, e da qual o Estado brasileiro é subscritor. A tortura, consoante a Convenção &eacu